Opinião

A gata de Derrida: breve tentativa de abordar a questão dos direitos dos animais (parte 2)

A gata de Derrida: breve tentativa de abordar a questão dos direitos dos animais (parte 2)
Jacques Derrida e seu gato Logos

Derrida, o grande filósofo, pergunta-se: “quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo o de uma gata, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo?” Por que ele tem esse incômodo se também a gata está nua? É próprio do homem incomodar-se com a própria nudez? “Acredita-se geralmente”, diz o filósofo, “que o próprio dos animais, e aquilo que os distingue em última instância do homem, é estarem nus sem o saber”. Este saber – “a consciência do bem e do mal, em suma” – distinguiria o ser humano dos demais viventes.

A consciência, inclusive a do bem e do mal, é a premissa básica da ciência que, pelo menos desde Hegel, chamamos de Direito. A ação, o ato, a conduta – a manifestação concreta da liberdade – é o objeto dessa ciência. A regra jurídica descreve (em terminologia científica, o melhor verbo para esta frase seria ‘tipificar’, que vem de ‘tipo’, que vem do alemão ‘tatbestand’, que vem de Hegel; mas este artigo não ousa “fazer ciência” (e talvez nem queira)) os traços básicos de uma dada ação; e projeta efeitos sobre quem for por ela responsável: “matar alguém: pena de 6 a 20 anos de reclusão” – diz, por exemplo, o artigo 121 do Código Penal brasileiro. O Direito põe a ação como seu objeto: ele pretende moldá-la, limitá-la, qualificá-la – ações lícitas e ilícitas, boas e más. Então supõe, como condição da ação, a consciência: a capacidade de compreender o lícito e o ilícito, o bem e o mal. A ação é o exercício da liberdade: o Direito se dirige a quem pode decidir se obedece aos seus mandamentos. A quem não tem esse poder decisão, o Direito é mudo: não faz sentido responsabilizar a nuvem pelo raio, pois nenhuma regra vai impedir a tempestade.

A capacidade de decidir entre o lícito e o ilícito, “acredita-se geralmente”, é humana. Apenas humana. E os animais, eles têm essa capacidade? Sabem distinguir o certo e errado? A gata de Derrida, com os olhos sobre o filósofo, sabe reconhecer sua nudez?

A ambiguidade do pronome, na última pergunta, é proposital. A “sua” nudez é, na verdade, de ambos: do filósofo e do animal. Mas apenas aquele se envergonha. A gata olha impassível. Ela é capaz de sentir vergonha? De compreender a vergonha do outro? De agir segundo essa lógica binária que distingue o bem do mal?

Voltaire observou que um cachorro, ao fim de três meses de treinamento, “estará sabendo mais do que sabia no início das lições”. Montaigne escreveu: “de quantas maneiras nós falamos a nossos cachorros? E eles nos respondem!” Dante foi mais longe: “Lactance atribui aos animais, não o falar apenas, mas também o riso”. Não há dúvida: os animais, ao menos aqueles com que convivemos e que chamamos pelo nome (este detalhe não irrisório), comunicam-se. Compartilham conosco suas peculiares percepções da realidade. São inequivocamente capazes aprender a se comportar de acordo com as expectativas daqueles com quem convivem. São até capazes de sentir felicidade e tristeza – o que definitivamente os aproxima de nós. Mas a pergunta permanece: são capazes de agir segundo regras jurídicas? Eles “ouvem a voz” do Direito?

Não, claro que não. E aqui, diante desta resposta, a questão que motivou meu último artigo (e também este de hoje) volta à tona: por que o Direito dá direitos a empresas, que são entes fictícios, e não a animais? A resposta tradicional é clara: justamente porque são fictícias, as empresas agem segundo a consciência dos homens que a compõem; os animais não têm tal consciência – e nenhum homem pode agir por eles. Logo, não podem ser sujeitos de direito e deveres.

De fato, ninguém negará que seria absurdo aplicar, a um touro que ataque uma pessoa, as penas cominadas ao crime de lesão corporal. Tampouco faria sentido dar uma herança a um cachorro: Nik Sputinik, a cachorrinha lá de casa, trocaria palácios de ouro por sua almofadinha de pelúcia. Se bem que essa frase não faz sentido: Nik Sputinik não sabe – e não é capaz de saber – o que é “trocar”. A gata de Derrida não sabe o que é nudez.

A tal ‘resposta tradicional’ supõe o Direito como uma realidade cultural compartilhada por sujeitos conscientes – ou seja, por seres humanos. Os animais, segundo essa visão, não são sujeitos: são objetos. As vozes mais altruístas dessa ciência estenderam aos animais o conceito de “tutela jurídica”: eles devem ser alvos de “proteção”. É um avanço importante. O Direito os protege em diversos níveis e sob diversas formas. Ainda assim, é uma proteção marginal, excepcional e, no fundo, ilógica: a humanidade segue matando milhões de animais todos os dias, com a permissão do Direito – permissão que a maioria de nós (inclusive eu), em cada refeição, tacitamente referenda.

Derrida, ao iniciar o ensaio de que extraí aquela cena curiosa em que ele está nu diante de sua gata, diz que gostaria de usar “palavras nuas”. Eu também. As palavras da ciência, as que aprendi a usar nas carreiras jurídicas, soam como se estivessem fantasiadas – com figurinos canastrões de uma novela de época. Diante da questão que me propus nestes dois artigos, elas não satisfazem: ainda busco a resposta. Terei que escrever mais um texto. Terá, esse texto, que ser mais nu.

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

Comentários:

Ao enviar esse comentário você concorda com nossa Política de Privacidade.