[Nota do editor: Serjão Santana sempre escreveu sobre futebol. Ao menos aqui, na Abertura. Mas seu último texto, escrito poucos dias antes de morrer, trata dum tema bem outro. Sempre me perguntei se convinha publicá-lo. Sempre me pareceu, o texto, uma “antologia” de contravenções inúteis. Então lembrei que estamos a poucos dias da Copa do Mundo; e que também lá, na sede da Copa, o pobre leitor pode suportar as mesmíssimas “agruras da abstinência”. Então concluí que as “dicas” do Serjão passaram a ser utilíssimas. Afinal, se vamos à Copa pra aguentar o mimimi do Neymar e o blablablá do Tite, convirá não estarmos inteiramente sóbrios.]
Um dos meus netos, metido a novo rico, me convidou pra ir a Dubai. Pensei comigo: “eu não consigo mais ir do Atalaia a Cabeçudas, vou me mandar pra Arábia? Era só o que faltava!” Mas ele me convenceu. Disse que lá tem boa comida e belas mulheres. Que voaríamos na classe executiva. E que Dubai é o destino ideal pra um velho nonagenário: como lá o cara só anda de carro, elevador e escada rolante, eu poderia me deslocar tanto quanto um maratonista etíope.
Chegamos, deixamos as malas no hotel e fomos a um restaurante. Pedi uma cerveja e uma porção de mariscos. Então ouvi do garçom a mais impactante notícia da viagem: lá não tinha cerveja. Aliás, bebida alcoólica nenhuma. Também não tinha marisco mas, francamente, dane-se o marisco. Como assim “não tem cerveja”?
Quando digo “lá”, não me refiro ao restaurante. “Lá” é Dubai. O desgraçado do meu neto só então me explicou que “em Dubai não tem goró”. Eu esmurrei a mesa:
– O quê?
A tigela com pão sírio bamboleou no centro do restaurante. Todos os cento e tantos clientes me olharam estupefatos. Meu neto me cutucou e disse baixinho:
– Calma, vô, a gente arruma uma bera por aí.
De fato arrumei. Mais do que isso: me tornei um perito em descolar um trago em Dubai. Nos dias que passei ali desenvolvi a arte de violar a lei seca do xeique narigudo. Agora ouso escrever uma antologia dos conhecimentos que adquiri. Modéstia à parte, há nisso algum engenho. Estas dicas, um pequeno manual pra pessoas não dispostas padecer as agruras da abstinência, será talvez minha última obra de valor. Talvez a única.
Dica 1
Se você tem grana, relaxe: vai ter bebida à vontade. Muita bebida boa. Do mundo inteiro. Mas cara, muito cara. Uma cerveja, em média, 70 reais. Isso aí, parceiro, segura o queixo: uma cervejinha long neck vale aqui 70 barões. Você estando disposto a pagar esse preço, não falta lugar pra tomar umas: qualquer restaurante de luxo, qualquer clube de praia, qualquer imitação de mercado árabe feita pra turista – ali sempre haverá bebida. Há também nos clubes noturnos. Fui ao Distrito Financeiro numa noite dessas e pedi uma dose (30ml) de conhaque: 90 reais. Pedi também um cigarro avulso e uma porção de mariscos. Não tinha nem um e nem outros. Fiquei analisando a festa dos grã-finos com o bigode ensopado de Remy Martin. Até que o garçom me acordou com a conta.
Dica 2
Se você tem pouca grana, melhor não vir a Dubai. Passa um fim de semana em Perequê. Se quiser tentar, e se além disso quiser beber, vou dar uns toques. Primeiro: esqueça os arranhas-céus e shoppings e beach clubs. Vá pra cidade velha e procure um restaurante com a seguinte referência: “alcoholic drink”. Não será fácil achar. Peça aos taxistas. Prefira os paquistaneses. Perto das docas há alguns bons lugares. Enquanto eu caminhava à beira do canal observando um cardume de carapevas percebi carregamentos de cerveja entrando pelos fundos de restaurantes que servem um peixe frito parecido com anchova. Entrei num deles. Abri o cardápio, apontei o prato mais caro e pedi uma cerveja. O garçom respondeu que não tinha. Eu me levantei fazendo menção de sair quando ele disse qualquer coisa como: “tá bom, coroa, eu te arrumo uma gelada”. Em inglês.
Em Dubai todo mundo fala inglês. O mais esfarrapado mendigo fala muito melhor que eu. Aliás, eu não sei senão algumas palavras da língua de Kerouac. Sou bom de mímica. Perguntei com os dedos: “quanto a cerveja?” Ele respondeu também com os dedos: “30 pilas”. Em moeda local. Dá uns quarenta reais. Ainda muito cara. Mas pra você, que deveria estar em Perequê em vez de torrar seus miúdos em Dubai, já é um ganho considerável.
Dica 3
Se você realmente não tem grana, terá que comprar bebida “no atacado” e consumir no quarto do hotel. Não é fácil achar. Não tem nos mercados nem em qualquer outro comércio lícito. Você terá que recorrer ao mercado paralelo. Eis como fiz. Fui a um sebo de livros e pedi algo da literatura “védica”. Era a senha. O cara quis me empurrar uns livros proscritos. Eu disse que na verdade procurava bebida. Ele me indicou uma casa de massagem em Al Ras. Ou era em Al Rigga? Sei lá, o Alzheimer tá me matando. Sei que era uma casa dum cazáqui nos fundos duma loja de chá. No centro da sala havia uma mesa em que quatro caras do Camboja jogavam cartas. Acho que era caxeta. De repente uma senhora com um véu e uma saia transparentes e uma grande barriga de fora entrou e me chamou pro quarto. Era a massagem. Eu me sentei na cama e apontei pro meu pé e reclamei em mímica do meu joanete. Ela saiu. Voltou com uma bacia de água morna e, tenho que admitir, fez uma massagem excelente. Meu joanete não dói mais! No fim, comprei três fardos de uma cerveja libanesa a oito reais cada, uma garrafa dum licor da Eritreia e outra dum conhaque tailandês, aliás muito bom. Total: 300 reais. Os cambojanos me ajudaram a levar as coisas pro táxi. A senhora da mensagem me fez um cafuné. Cheguei no hotel era alta madrugada. Dei uma gorjeta em dólar pra um moleque levar a mercadoria enrustida pro quarto. Quando cheguei meu neto tava apavorado:
– Porra, vô, isso é hora de chegar? Um velho de noventa anos andando sozinho na madrugada de Dubai!
– Noventa e tantos – eu disse servindo uma dose do conhaque tailandês. Enquanto coçava o joanete, emendei: – Me arruma mais cem dólares?
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