Preciso de uma personagem e não tenho muito tempo. Talvez uma hora. O que durar o brilho. Basta uma personagem. Não é preciso contexto nem enredo nem amor. Amor é sempre impreciso. Basta a personagem. A pessoa a persona a máscara. Algo por trás. Profundidade. É preciso pensamento. A personagem deve mergulhar em si. Ou permitir que eu mergulhe. Deve ter angústia e medo. E alegrias. Não. Não tenho tempo pra alegrias. É distante o lugar em que se escondem. Tenho menos de uma hora. São quase cinco. Basta a personagem.
A ré. A acusada. A personagem é a culpada pelo crime. Não tenho tempo pra um processo. Não ouvirei defesas. Sou o acusador e o juiz. Sou mais do que foi Pilatos. Tenho mais convicções e minhas mãos estão sujas. Não importa. Não importa o crime da ré. Pode ser uma tolice famélica. Uma chacina candelárica. Um daqueles pecados que torce o pescoço da história. Um ato revelador como o de Eva. O crime é só a premissa tácita. A verdade pressuposta. Não preciso demonstrar verdades. Basta a personagem. Talvez seja ela, Eva. Talvez a serpente.
Não. Minha personagem sou eu. Enfim percebo. Eu. Claro. Foi sempre tão óbvio. Eu. A ré. A acusada. A culpada pelo crime. Eu e eu e eu. Não tenho tempo pra um processo. Não preciso de provas. Sei qual é meu veredito. Sei que é justo. Sei melhor que qualquer um. Mesmo que eu não saiba o que é justiça. Não tenho tempo pra isso. Eu mesma me condeno. Inapelável. Sou meu juiz mais rigoroso. Isso é tudo. A culpa me forma. Do chão manchado de culpa eu me ergo. Culpada eu existo. Isso é tudo. Não tenho tempo pra discutir tempos priscos. Não gosto de filosofias revisoras. Não quero palavras vazias onde a voz ecoa sem achar um alvo. O alvo sou eu. Minhas faltas. Falta de amigos sorridentes e namorados sorridentes e fotos sorridentes no instagrão. Falta de lugar no reduto estressante entre marechais e reinoldos. Falta de ar num vale repleto de itapocus apodrecidos. O alvo é minha vida cheia de lacunas. O alvo sou eu e só eu. Eu. E basta. Basto. Sou a personagem. A culpada. A culpa me forja. Me faz mulher. Consciente e ansiosa e delirante. Talvez poeta. Sim. Isso. Claro. Foi sempre tão óbvio. Poeta! É a hipótese que eu buscava. A linha sobre o abismo. A chance da personagem. A poesia… E enfim ouço a música:
Eu caio sempre nesta cilada
Navego rios de pedras e pós
E sou nada
Mais que cada
Hipótese esticada sobre as setecentas quedas da foz.
Parecem versos antigos. Soam como se viessem do passado. Engano. Ainda são quentes de tão novos. Ainda berram a dor do parto. Fecho os ouvidos de pavor. Penso em tentar algo mais. Outro poema. Outra personagem. Outra hipótese. Não há mais tempo. São quase seis. O brilho acabou. O sol já ofusca tudo. O tempo só permite a luz-ruído do dia.
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