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Meskel: a celebração etíope da vera cruz

Meskel: a celebração etíope da vera cruz
J. Countess / Getty + Eduardo Soteras / AFP via Getty

Em torno da imensa fogueira que espalha fragrâncias no ar, a multidão reza e canta e celebra. Os elementos desta celebração são, de fato, a madeira e o fogo: a madeira evocando a cruz, a vera cruz em que agonizou Jesus Cristo, encontrada por Santa Helena mais de três séculos depois; e o fogo, ardendo no ritual pleno de simbolismo, representando a chama sagrada cuja fumaça mostrou à Santa o local onde a cruz estava. 

Realizado todos os anos nos dias 26 e 27 de setembro, o Meskel celebra a exumação da vera cruz. É o principal evento da igreja ortodoxa tewahedo, a mais importante da Etiópia e a que reúne mais seguidores entre as chamadas igrejas cristãs ortodoxas orientais. Creem os fiéis que Santa Helena, rainha de Constantinopla e mãe do imperador Constantino, estava em Jerusalém e orou pedindo orientação para encontrar a verdadeira cruz do sacrifício de Cristo. Seguindo a fumaça de uma fogueira, foi até o local onde o objeto sagrado estava oculto. Ao encontrá-la, ela teria acendido tochas para celebrar o feito – ritual que os fiéis repetem todos os anos.

A Damera, uma enorme fogueira erguida em Adis Abeba, é o centro do Meskel. Ela é formada por uma pilha de troncos rodeados por feixes de galhos que são adornados com flores frescas e ervas da Abissínia. Multidões se reúnem em torno da Damera enquanto os sacerdotes cantam hinos e recitam orações. O evento atinge o ápice quando o líder da igreja etíope acende a fogueira.

Dentre as igrejas cristãs, as chamadas “ortodoxas orientais” – que reúnem, além da Igreja etíope, a igreja ortodoxa copta, a igreja apostólica da armênia, a igreja ortodoxa siríaca, a igreja ortodoxa malankara (da índia) e a igreja ortodoxa eritreia – são as mais distintas quando comparadas às igrejas de matriz europeia. Já no ano 451 aquelas se separaram das igrejas “ocidentais”, no primeiro grande cisma da história do cristianismo. Somente em 1054 ocorreria a divisão das igrejas apostólicas, que deu origem às igrejas romana (católica) e bizantina (ortodoxa) – as maiores da Europa até hoje. 

Estima-se que a igreja ortodoxa etíope tenha mais de quarenta milhões de fiéis. Boa parte deles reuniram-se em Adis Abeba, nesta semana, para o Meskel. Houve críticas apontando a temeridade de promover tamanha aglomeração durante a pandemia. Por outro lado, os líderes religiosos afirmam que a celebração promove a paz e é uma valiosa oportunidade para a reconciliação. De fato, a simbologia do ritual parece indicar uma espécie de redenção: o fogo sagrado, símbolo do poder divino, consume a madeira – a mesma madeira de que é feita a cruz, símbolo do poder terreno e instrumento do sofrimento humano. Há nesta redenção algo que sugere a paz: a exumação da cruz representa a descoberta da essência de nosso sofrimento; o fogo, nossa salvação. 

Num país assolado por uma guerra civil que matou milhares de pessoas desde novembro passado, é possível esperar que esse ritual – severamente limitado em 2020 por causa da pandemia – venha como um bálsamo divino. Mas também é possível que essa esperança, afinal, perca-se na vertigem das mazelas humanas.

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