Opinião

Meu melhor amigo*

Meu melhor amigo*

A verdade é que eu nunca quis ser mãe, não por insegurança de colocar mais uma vida nesse mundo caótico, quando engravidei isso nem passava pela minha cabeça. Não queria filhos pois me conhecia o suficiente para saber que não seria boa mãe.

A vida não está nem aí se você está preparada, não tem piedade de suas decisões precipitadas, tampouco lhe dá um manual de instruções para lidar com escolhas delicadas e perpétuas, mas aparentemente percebi isso tarde demais. 

Geniosa, difícil de lidar e conviver, saí de casa pela primeira vez aos 14 anos, fui trabalhar de doméstica, se fosse para aceitar ordens de alguém, que pelo menos me pagassem por isso. Não tive medo algum, estava por conta própria, daria meus “pulos”, com a segurança cega de uma jovem determinada.

De criação católica, cresci ouvindo a sentença, “Deus dá o frio conforme o cobertor”, em uma tradução laica, seria algo como “Te vira aí otária, se tiver frio, problema é seu e ninguém vai te ouvir chorar”. 

De fato, não chorei no momento do parto, estava completamente anestesiada quando fiz a cesariana. O motivo? A vida que carregava em meu ventre resolveu nascer sem avisar, arrebentando minha placenta. Talvez por ainda estar um pouco grogue, não entendi nada e entrei em negação. De jeito nenhum essa criança havia saído de dentro de mim, não tinha nenhum traço físico parecido com os meus. 

Como mamãe, o tal do “cobertor divino” não foi comprido o suficiente para me proteger das incontáveis vezes que voltei para casa exausta do trabalho, encharcada pela chuva e pelo vômito do pirralho, abalado pelas náuseas causadas pelo balanço do ônibus. Essa era minha rotina, eu e o pequenino vomitão.

Antes de surtar completamente, decidi me livrar de um casamento protocolar e abusivo em diversos aspectos, mas dessa vez foi tudo mais complexo, já não era mais uma jovem impetuosa e irresponsável, já não estava sozinha, mesmo assim fui embora pela segunda vez, agora carregando comigo um filhote, o apêndice externo que jamais iria se lembrar do que passamos juntos. 

Ontem meu filho, meu melhor amigo, completou 6 anos. Enquanto eu trabalhava, de casa ele me ligou perguntando “mãe, tá tudo bem aí?”. 

Antes de sair do serviço e comprar um bolo para comemorarmos, dei uma passadinha rápida no banheiro, meu peito explodiu em angústia e chorei como um recém nascido. 


*Nota do editor: A sensibilidade jornalística de João Monteiro nos legou três grandes crônicas. Inspiradas em entrevistas cujos detalhes são irreveláveis, elas visitam profundezas densas – e tensas, advirta-se. Publicamos o primeiro ato dessa trilogia, “Os demônios de cada dia”, no último dia 12; o segundo, “Acne”, no dia 22; este, agora publicado, é o último. Coisa finíssima! Confira nossas publicacões e permita-se esse mergulho.

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