Opinião

Multiversos

Multiversos

Estavam debatendo sobre quem será o mais alto quando ambos forem adultos:

– Vou ter um metro e oitenta.

– Vou ter um e oitenta e cinco.

O debate tornou-se uma disputa. Já não importava a altura, mas a vitória:  

– Vou ter mil metros.

– Vou ter um milhão.

A disputa perdeu-se em hipérboles:

– Vou ter mil anos-luz.

– Vou ter um milhão.

As hipérboles foram até o limite:

– Vou ter o tamanho do universo.

E o limite foi extravasado:

– Vou ter o tamanho do universo e de todos os multiversos.

Aí, confesso, me perdi. Até sou capaz de cogitar – assim em abstrato – o tamanho do universo. Mas os multiversos, que tamanho podem ter? Minha noção de espaço supõe a realidade. A deles, não. Crianças!

“Realidade” é uma palavra difícil. Crianças lidam melhor com ela. Os adultos querem encaixotá-la. A palavra “universo” é uma espécie de “caixa” em que guardamos a realidade. As crianças não se contentam com isso, com essa caixa, com esse prefixo – “uni” – limitando tudo. Querem mundos paralelos. Realidades virtuais. Multiversos e metaversos e quaisquer outros versos que conceber sua vã poesia.

Não se trata apenas de uma diferença entre adultos e crianças, mas de um abismo entre gerações. Mesmo depois de adultas, nossas crianças terão outra ideia do que seja o ‘mundo da vida’: a ideia de que o espaço e o tempo se estendem além da realidade natural que há sobre o chão, sob o céu, em volta de nossos corpos. Sua realidade abrangerá também o que não tem existência física. Nossa dicotomia básica, a distinguir o real do virtual, fará pouco sentido pra elas. Tudo isso, virtual ou real, elas chamarão apenas de mundo.

A ideia de que habitamos multiversos nos espanta. Mas de fato temos mais que uma existência física. Muitos de nós, há milênios, acreditam em dimensões metafísicas: espaços onde apenas a alma atua. Os céticos contestaram essas crenças com argumentos agudos. Mas quem contestará, hoje em dia, a existência de espaços onde figuramos sem qualquer expressão física?

A quem se dedique a reflexões jurídicas, esse espanto é ainda maior. O ‘mundo virtual’ não se sujeita às simplificações com que a lei tenta enquadrá-lo. Conceitos fundamentais – propriedade, contrato, crime – não têm “ali” o mesmo rigor. A linguagem em si não produz “ali” os mesmos efeitos. A dicotomia entre natureza e cultura é completamente abalada: teoricamente, tudo “ali” é cultura.

Mas “ali”, no “mundo virtual”, o destino do mundo também vai sendo decidido – eis o que nos parece tão espantoso e às crianças, tão natural. Também “ali” há o espaço e o tempo. Há mercados e políticas. Há a paz e a guerra – e, como em toda guerra, armas letais e posições estratégicas e centros de comando. Também “ali” se trata da vida e da morte.

As crianças compreendem naturalmente que “ali” na verdade é “aqui”. Sabem que não há distância a nos separar do “mundo virtual” e que tudo compõe – sem hierarquias ontológicas – o mundo da vida e seus multiversos. Elas entenderão melhor, quando adultas, que tudo isso compõe a dimensão humana. Então saberão conceber uma nova lei e uma nova linguagem de acordo com a razão; e a razão, nova ou eterna, trará a paz.

Nossa geração parece incapaz disso. A guerra em curso, que tem na Ucrânia o capítulo decisivo, é um sintoma claro. Nós conseguimos espalhar nossa existência em múltiplas dimensões. Mas ainda não somos capazes, diante do caos que assim criamos, de entender o que nos é essencial.  

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

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