Arte

O homem que não tomou a vacina

O homem que não tomou a vacina
Arte de Luana Plebani (@lp__artes no Instagram)

Ele vivia numa pequena cidade no sul dum país no sul do mundo. Também ali houve a pandemia. Também ali todos se vacinaram. Só ele não.
 
A pandemia passou. E as vacinas. E muitas décadas.
 
A pequena cidade seguia pequena. O país do sul do mundo seguia sendo o sul do mundo. Mas os homens mudaram. A vacina os mudou: agora eram todos chineses. Só ele não.
 
Os chineses padeciam do mal chinês. Uma espécie de anemia. Nenhum chinês jamais acreditou ser semelhante a deus nenhum. Nem se considerou um modelo pra humanidade. Nem achou em si a fórmula eterna do ego. Chineses não ousavam mirar a eternidade. Só trabalhavam e consumiam e se relacionavam. Talvez fizessem proezas autorais. Talvez se amassem. Talvez até fossem livres. Mas eram definitivamente incapazes de ousar não viver o destino humano.
 
Ele não. Ele isolou-se. Ele creu pra sempre na perfeição de seu ego. E viveu anos assim, protegido pela placenta espasmódica dessa crença. Nos dias sem vento passava horas admirando-se na face do lago. Escreveu tratados sobre guerras santas. Desenhou o talhe de túnicas e capuzes. Exaltou em versos seus iguais e seu deus. Mesmo seu deus, aliás, ousou recriar: ele o esculpiu numa imagem distorcida que coubesse no minúsculo altar de seu cofre.
 
Morreu com a idade de Matusalém. Não deixou amigos nem descendência. Seu cadáver foi achado sob sete palmos da mais densa solidão.

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

Comentários:

Ao enviar esse comentário você concorda com nossa Política de Privacidade.