Opinião

O túmulo da música

O túmulo da música

Rolava “Água de Beber” do Tom Jobim. Instrumental. Piano, guitarra, baixo e bateria. Improvisação. Grandes músicos. Jovens. Não mais do que vinte anos. Eletricidade pura. Quarta, 26 de janeiro, dez e pouco da noite. No bar da Scar, em Jaraguá. Rolava o maior jazz. 

Então olhei em volta: havia ninguém. Ou melhor: quase ninguém. Um amigo dos músicos que aplaudia comovido a cada número. Duas ou três mulheres numa mesa ao fundo, indiferentes. E o pessoal que trabalha no bar. Minha amiga chamou: “vamo embora”. Eu olhei arregalada: “o quê? Você não tá ouvindo?” Mas ela esgrimiu um argumento inapelável: “é tarde, tô com fome, os restaurantes vão fechar: temos que ir”. E fomos. 

Eu vim a Jaraguá pra ver o FEMUSC. Cheguei na terça. Assisti ao show de música popular no Pequeno Teatro. Incrível. Quis ver também o concerto que seria logo depois, mas minha amiga vetou: “é muita música pra um dia só, vamos”. E fomos. Mas com a promessa de que veríamos o concerto da noite seguinte. E vimos. Foi sensacional. Peças de Mozart. Canto lírico. Quartetos. As melodias finas do gênio. Então olhei em volta: pouca gente. O Grande Teatro com grandes vazios. Acordes geniais preenchendo amplos vácuos na acústica perfeita da Scar.

Jaraguá é engraçada. Tem o mais belo teatro do Estado, talvez do país. Tem o mais importante festival de música erudita do Estado, talvez do país. Tinha a música de Mozart, de graça. Mas não tinha público. Sobravam espaços vazios. Os poucos que assistiam ao concerto eram, na maioria, os próprios músicos que vieram de fora pro FEMUSC. Acesas as luzes, aplaudimos todos. Mas fomos embora com a incômoda sensação de que a arte ali realizada merecia mais atenção. Muito mais. 

Do Grande Teatro desci ao bar. Ali os quatro jovens que citei tocavam soberbamente. “Água de Beber” do Tom Jobim. Faziam uma arte tão bela quanto a do concerto encerrado minutos antes. Uma arte ainda mais ignorada. Totalmente ignorada. Bateu um desespero quando olhei em volta e vi o bar vazio. Deu vontade de sair pela rua gritando: “Jaraguá, Jaraguá, acorda! O que faz em casa nesta noite? Vem ver isso! É música fina! É arte elevada! É Jobim!” Mas me contive. Respirei. Lembrei da famosa frase do Vinícius dizendo sobre São Paulo. Não resisti à paráfrase e soltei meu veneno no ouvido de minha amiga: “Jaraguá é o túmulo da música”. 

Fui injusta, claro. Tenho perfeita ciência disso. O túmulo da música não é Jaraguá ou qualquer outra cidade. Aquela frase foi só um desabafo. Uma maneira de aliviar minha frustração. Todos sabemos: a indiferença a essa música é geral. Nosso século condenou Mozart e Jobim e tantos outros gênios às margens mais remotas do “mainstream”. O túmulo da música é a nossa época. 

Foi uma estranha tristeza a que então me abateu. A profunda tristeza de viver numa época escura. A dor de me sentir definitivamente só. Como disse, eu me desesperei. Pensei em formas de sairmos do transe. Pensei em correr gritando pelas ruas. Pensei em pichar nas altas paredes da Scar: “acordem, tá tocando Mozart!” 

Minha amiga enfim me convenceu: fomos embora. Já no restaurante, ela soube aplacar minha tristeza. Disse que nas quartas o público costuma ser pequeno. Na quinta seria melhor. Na sexta, melhor ainda: “vão apresentar as ‘As Bodas de Fígaro’”. Segundo ela, há muita gente na cidade que gosta de ópera. “No fim de semana esse bar vai encher”, ela previu cheia de otimismo. Então lançou o argumento definitivo: “o FEMUSC tá completando dezesseis anos”.  E arrematou: “você deve ser uma péssima pichadora”. 

Ouvir tudo isso me acalmou. Ou foi a pizza: meu desespero talvez fosse efeito da fome. Não sei. Sei que sorri. Fiquei imaginando o bar lotado ao som de Tom Jobim. E o Grande Teatro, com todas as cadeiras ocupadas, apreciando a ópera de Mozart. Isso não seria pouco. Se toda essa gente estará reunida em torno dessa música, então ainda haverá esperança. 

Não manhã seguinte voltei a Itajaí. Na despedida, minha amiga ofereceu: “volte quando quiser.” Eu respondi de pronto: “sim, em janeiro de 2023.”

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