Arte

Pernas

Pernas
Arte de Luana Plebani

Ela passou e eu só vi as pernas. Tava deitado na areia. Virado da noite. Amanhecendo ali em curto-circuito. Abri os olhos quando ela pisou a um palmo da minha orelha. E foi pisando rente a meu corpo. E quase tropeçou no meu pé. Vi ela de costas. Com chapéu e uma blusa cheia de cores. E pernas nuas. Fazendo zigue-zague na praia lotada até sumir na multidão.

Me levantei. Ou quase. Sentei com as mãos pra trás. Água, onde tava a água? Olhei em volta. A praia explodindo em cores. O branco da areia mole. O sol incendiando a visão inteira, inclusive o azul do mar. Água, água, não tinha água? A praia começou a girar. Milhares de pontos coloridos num turbilhão. Fechei os olhos. Tateei procurando por água. Levantei de fato e andei bambo entre os tantos corpos até o mar.

Tudo então se acalmou. Um mergulho na água gelada e veio a lucidez. Os pensamentos e as memórias, a noite anterior em quadros na parede, meus pedaços amarrados na teia de aranha: eu, meu corpo, meu ser indivisível sob o sol. Respirei. Me lembrei do futuro, de meu novo projeto, daquilo que agora consumia toda minha atenção: aquelas pernas.

Saí do mar procurando. Duas pernas entre milhares de outras. Duas pernas que vi ao despertar do sono ou do transe. Uma agulha no palheiro? Duas? Não pensei na dificuldade da procura. Não perdi tempo apreciando outras pernas. Eu buscava aquelas. Eu me lembrava dos detalhes. O ângulo das coxas. A palidez da pele atrás dos joelhos. As panturrilhas tensas. Os cumes dos tornozelos. Não tinha outras pistas. Nenhum adereço e nenhuma tatoo e nem mesmo a cor das unhas. Em minha memória havia apenas as duas pernas nuas e imaculadas. Os pelos. A pele. Os músculos. Os ossos.

De repente achei. Elas estavam sobre uma enorme toalha branca entre outras tantas pernas em volta dum guarda-sol. Agora sem blusa e chapéu, ela mostrava as costas nuas e a tez eriçada da nuca. Meu olhar tateava seu corpo como a ponta dum pincel. A nuca. As costas. A bunda. A cortina sacana do biquíni. E depois dum salto os tornozelos. Cada fibra da panturrilha. O futuro escrito nas linhas atrás dos joelhos. As coxas se aproximando mais e mais e mais.

Quando levantei a vista, todos em volta me olhavam em silêncio. Uns irados, outros boquiabertos. Todos menos ela, que só então se virou. Apoiada sobre os cotovelos, ergueu os óculos. Me olhou por um instante. Um longo instante. E sorriu.

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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