Opinião

Redimido

Redimido

Amigo, aceite um conselho: não deixe seu filho se tornar um jogador de futebol. A carreira pode ser recompensadora de várias maneiras. Mas também pode ser cruel. Aliás, certamente será cruel: em algum momento ele será crucificado pela opinião pública. E esse calvário, amigo, pode ser devastador.

Sim, eu sei: “opinião pública” é algo obscuro. É sempre o sujeito vago de uma oração incerta. Por exemplo: se dizemos que a “opinião pública” rejeita o atual governo, desconsideramos os trinta por cento (com margem de erro de 2% pra mais e pra menos) que veneram o “mito”. O “público” que emite a “opinião” é sempre um coro de vozes dissonantes.

Menos quando esse coro crucifica um jogador de futebol. Aí não tem dissonâncias. Aí a crucificação é unânime: o coro canta o veredito mais cruel em uníssono. Isso porque esse veredito vem da própria torcida do time em que ele joga. E ecoa em todas as outras torcidas, que sempre adoram ver os adversários se dilacerarem rejeitando os próprios ídolos.

É o caso do Hugo, goleiro do Flamengo. As falhas dos últimos jogos geraram um fluxo de críticas e deboches tão intenso que derrubaria o Colosso de Rodes. O pobre rapaz parece ter sido torturado na máquina do Kafka. As injúrias mais agudas, os memes mais cortantes, as previsões mais sombrias: Hugo foi varrido pela voz da multidão e seu hálito podre.

O caso lembra o de Barbosa. Meu pai, Serjão Santana, escreveu sobre isso aqui na Abertura (“A Maldição e o Herói”). O grande goleiro da seleção de 1950 foi vítima da mais unânime condenação que um brasileiro já sofreu. Nem o mais canalha dos criminosos, ou o mais corrupto dos políticos, ou o mais brilhante dos torturadores – nenhum deles jamais foi tão execrado. Essa execração não era só a reação a uma suposta falha na final da Copa. Barbosa era negro e pagou por isso. O hálito podre da multidão exalava o odor das vísceras racistas de nossa sociedade.

A crucificação de Hugo se ressentia do mesmo mau cheiro. Suas falhas não justificavam tanta e tão unânime crueldade. Se eu desaconselhava ser um jogador de futebol no Brasil, agora acrescento: quando se é goleiro – e negro – é muito pior.

Mas então teve o fla-flu no domingo. Numa atuação rigorosamente heroica, o jovem goleiro brilhou intensamente. Foi o melhor do jogo. Cumpriu uma jornada memorável. A torcida flamenguista, que o vaiava desde o primeiro minuto, passou a ovacioná-lo. O coro agora gritava seu nome em uníssono. Hugo estava redimido.

Isso até o próximo jogo. Ou até a próxima falha – que virá, que sempre vem. Então a redenção será esquecida e a condenação se renovará ainda mais cruel. Por isso, amigo, eu insisto: não deixe seu filho se tornar um jogador. Aconselho dirigi-lo à carreira política. Pode tornar-se presidente e, ainda que seja o pior da história, terá sempre seus fieis seguidores.

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