Opinião

Serjão Santana: Núcleo Duro Rubro-negro

Serjão Santana: Núcleo Duro Rubro-negro
Ao fundo, arte de José Saboia

Idoso que sou, tenho estado recluso. Limito-me a frequentar, além da minha casa, a do Juquinha, a quem meus leitores já foram apresentados. De resto, apenas o mar. Mas agora estou vacinado e quarentenado. Cumpri todos os ritos da imunização. Sinto-me jovem como se tivesse setenta anos. E então liberado a voltar, depois de tanto tempo, aos aprazíveis convescotes do Núcleo Duro.

Eles se reúnem em todos os jogos do Flamengo. Bem ao contrário de mim, são jovens e rubro-negros. Por que me convidam, não sei. Talvez porque ouçam as prudentes advertências extraídas de minhas tantas décadas. Talvez porque se divirtam com minhas lamúrias botafoguenses. Talvez porque forneço, de quando em vez, um peixe bom.

O fato é que nos reunimos, fazemos uma janta e tomamos cerveja, cachaça e chá – sim, chá: uma gíria beatnik pra designar um digestivo feito de ervas. E então discutimos sobre o Flamengo até as mais obscenas minúcias. Ou melhor: eles discutem. Nestas horas meu botafoguismo se aquieta e eu apenas aprecio os debates – e os embates. O que mais impressiona não são os argumentos esgrimidos ou as dissenções mal resolvidas; o que espanta é que, apesar disso, eles são capazes de alcançar e manter convicções unânimes sobre os mais essenciais aspectos do flamenguismo. Por isso eu os chamo de Núcleo Duro: eles conceberam dogmas rubro-negros, uma espécie de doutrina que seguem com cada vez mais rigor.

Trata-se de dogmas interessantes. Têm profundidade. Edificam o espírito. Por exemplo: a fidelidade. O flamenguismo é alçado a uma espécie de religião: pode-se criticar o Flamengo, falar mal dos jogadores, dos dirigentes e até do Clube em si – mas nunca, nunca deixar de torcer pelo time: isso não é uma alternativa. É como na vida: há que se aprender a erguê-la sobre uma ou outra convicção inexorável, evidente em si, sólida e eterna como a pedra alta do Sinai. Do alto desta convicção, a paixão que eles sentem pelo futebol é só um desdobramento da condição rubro-negra de cada um: o jogo só faz sentido se for relacionado ao time; se não houvesse o Flamengo, o futebol lhes suscitaria tanto interesse quanto o campeonato sueco de curling. Ou melhor: o campeonato sueco de curling, especialmente na modalidade feminina, talvez lhes suscitasse interesse maior.

Os dogmas rubro-negros formam uma espécie de Carta de Princípios, sistematizados com impecável rigor sobre o pétreo pilar da cláusula primeira: uma vez Flamengo, sempre Flamengo. É incrível como o Lamartine – que, embora talentoso sambista, não era nenhum Camões – tenha sido capaz de um verso tão exato. O flamenguismo se ergue inteiro sobre esse fundamento. E, com a mais impecável harmonia, a doutrina dogmática se desdobra em mandamentos: a fé na vitória, o repúdio à autopiedade, a veneração ao Zico.

É aí onde eu queria chegar. Na semana passada, quando voltei a frequentar o convescote, o Núcleo Duro me surpreendeu. Eu já imaginava que eles estivessem delirando com essa fase do Flamengo que vem desde 2019; mas não supus que o delírio fosse tanto. Uns disseram que o Gerson é o melhor volante do mundo. Outros previram que o Arrasca vai concorrer à Bola de Ouro da FIFA. Houve até quem sustentasse que o Bruno Henrique é uma mistura de Jairzinho e Usain Bolt. Um deles usava uma camisa em homenagem ao Willian Arão. Pensei comigo: Willian Arão! Todos esses delírios eu apreciei com bom humor, sentado junto a uma luisalvense. Até que despontou, com inacreditável unanimidade entre eles, um delírio insuportável: falando sobre o Gabibol e projetando os números que ele pode alcançar, eles ousaram dizer: pode superar o Zico. Pensei comigo: meu Deus, chegaram no Zico! Vilipendiaram o trono divino! O edifício dogmático da doutrina rubro-negra, aos meus olhos, ameaçava ruir.

Então começou o jogo. O Ceni escalou três zagueiros, todos muito ruins. Pôs o Vitinho na ala, ou na meia, ou na ponta, sei lá onde jogou o Vitinho. E o Arão no meio. Com quinze minutos ele deu um chute na cara dum equatoriano e foi expulso. Com três beques, o Flamengo tomou dois gols de bola alta. A tal LDU, de uma ruindade dolorosa, só não ganhou por detalhe.

Após o jogo, entre cervejas, cachaças e chás, o Núclelo Duro vociferava. O Arão era um irresponsável. A defesa, uma peneira. O Ceni, definitivamente imprestável. Era urgente, eles anunciaram em mais uma unanimidade, resgatar aquela nítida superioridade do Flamengo de Jesus. O flamenguismo do Núcleo Duro, como uma folha ao vento, balouçava agora em abismos escuros.

Solidário a meus amigos, cheguei a pensar em trazer uma daquelas advertências que só alguém tão velho pode dar. Eu diria que não há essa superioridade que eles supõem; que o Jesus, com o perdão do trocadilho, não é nenhum santo milagreiro; e que o Arrasca não é o Pedro Rocha, o BH não é o Jairzinho, o Gabigol não é o Zico. Eu tentaria abrir a tela vasta da história e, ali, mostrar o exato tamanho do time de Gabi, Arrasca e Arão.

Mas não. Achei melhor não dizer nada. Só o tempo é capaz de ensinar certas coisas. Dei um último gole e adeus a todos. E prometi trazer uma garoupa pro próximo convescote.

Serjão Santana

Serjão Santana jogou futebol amador em Itajaí. Fã dos irmãos Rodrigues, abraçou a crônica esportiva. É marcilista e botafoguense.

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