Opinião

Serjão Santana: O Flamengo tem algo que sei lá…

Era quase meia-noite e o jogo estava acabando. O São Paulo vencia. Ao Flamengo restava a virada: o empate não mudava a situação. O time, a essa altura, estava entregue. A transmissão já mostrava em meia tela o jogo de Porto Alegre. O Internacional massacrava o Corinthians. Bastava a vitória ao Colorado pra sagrar-se campeão. Bastava um gol. 

Pensei comigo: não vai ter gol. O Inter não vai fazer. Tem algo com o Flamengo que sei lá, protege. Uma corrente que empurra o barco já sem remos. Uma força que ainda carrega depois que todos, cada jogador e cada torcedor e mesmo cada alma rubro-negra, já não têm força pra lutar. Algo que sei lá, luta até morrer. 

Mário Filho disse que o Flamengo, antes do seu primeiro jogo, já era o maior time do país. A história é conhecida. Algumas estrelas do Fluminense brigaram com a direção do clube e resolveram fundar o time de futebol do clube vizinho. Mas o Flamengo, que até então se dedicava às regatas, não tinha sequer onde treinar. Arranjaram um campo perto da Praia de Botafogo. Cada treino era um acontecimento: multidões se reuniam pra ver os craques batendo bola – bem diferente dos craques de Fluminense e Botafogo, que sempre só treinavam em canchas aristocráticas atrás de muros inexpugnáveis. Ali, no terreno baldio em que brincavam as estrelas do Flamengo, não havia muro nenhum. E era uma festa: os homens rindo dos dribles mais sacanas, as mulheres sorrindo aos craques mais sacanas, as crianças correndo atrás de cada bola que saía pela lateral. Em 1911, o Flamengo não havia sequer estreado; mas já era o time do povo. 

Essa popularidade é a essência do time: o código genético, a substância medular, o destino inelutável. Os fatos não determinaram essa essência: ela, nascida antes da história, deu à luz os fatos. E assim a história se fez. E vieram as cores, o rubro e o negro das peles do povo. E vieram Leônidas, Domingos e Zizinho. E o Maracanã. E Zico. E cada fato vindo nos momentos mais propícios, como sementes jogadas nas margens úmidas do tempo. E tudo se tornando sempre maior. Não, não é só popularidade: é a grandeza, afinal, em sua forma mais rara – a grandeza como um dom do povo.

Grandeza, entretanto, nem sempre significa sucesso. A temporada do Flamengo, a última, foi um espetáculo de erros: a soberba do elenco, os erros do Vereador, o capachismo do Presidente do Clube diante do Presidente da República. Tudo indicava que a temporada seria um estrondoso fracasso. Por justiça, era isso o que merecia. Mas o Flamengo é maior que a justiça. Ou melhor: nunca é injusta sua vitória, pois há sempre – ideal e inexorável – a razão pra que ele vença. 

Já era talvez meia-noite e o jogo do Morumbi tinha acabado. A TV agora só mostrava o Beira-Rio. Faltavam talvez dois minutos. O lateral do Inter cruza na área: gol. Um sopro frio corta as almas todas da grande nação. Mas o gol foi anulado. O Inter pressionou mais. Bola na área, bate e rebate, chute pra fora. Pensei comigo: não tem jeito, já era. Depois de vencidas todas as suas forças – os jogadores caídos, os torcedores calados e mesmo as almas, as mais remotas almas rubro-negras, perdidas no purgatório dos acréscimos – restava ainda, do Flamengo, a essência e o destino. E o Flamengo venceu. 

Tem algo que sei lá, depois de tudo, ainda existe. 

Serjão Santana

Serjão Santana jogou futebol amador em Itajaí. Fã dos irmãos Rodrigues, abraçou a crônica esportiva. É marcilista e botafoguense.

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