Arte

Wagner Rengel – Usina

Wagner Rengel – Usina
Arquivo Pessoal

Dei dois pequenos passos para trás. Era o espaço que havia ali. Diante de mim, o som incessante da cachoeira, alto, grave e a altura, uns dez metros talvez, que não deixava escolha. As pedras úmidas se misturavam com limo, barro e bromélias. Um paraíso para ser contemplado, palavra esta que ninguém ali sequer sabia falar. A gente fumava um baseado lá embaixo e depois subia pela encosta de pedras, uma trilha escorregadia e íngreme.

Lá em cima não havia como voltar. A água gelada lá embaixo, o tempo do voo, da queda, o contato com a água ardia os pés e pressionava o queixo para cima. Havia sempre quem era um pouco mais e pulava de cabeça ou escalava a parede de pedras e escolhia lugares mais altos. Os heróis.

 Essa fase da vida é um ritual de passagem constante, o tempo todo, o colégio, os amigos, os amores, as drogas. Depois que passa disso, quando passa, segue, marcado, fundado como alguma coisa que não se sabe ao certo e leva para o resto da vida em memórias estranhas misturadas com orgulho e insensatez.

Criando coragem era a forma de dizer do tempo de espera. Ou se tem ou não se tem. Aquele lugar natural e quase secreto, barragem envelhecida pelo tempo e pela força lenta e constante da natureza de se apropriar do que é seu. Abandonada à própria sorte, um sonho louco de retirar energia dali, onde a cidade acaba, a rua acaba, o mundo acaba. Coisa de quem cria e daqueles restos, talvez outra energia que buscávamos. Ainda não sei dizer o nome dela, mas o corpo, as sensações, o descontrole, o limite e entender o que é coragem compunham um pacote que só fazia sentido com o outro, os amigos, as inesquecíveis más influências. Um lugar e uma busca onde o tempo parava alguns segundos.

Os dois passos para trás devem ser exatos para se lançar à frente e pisar na pedra que faz borda com o vazio e a queda do instante em que o pé se descola do controle dura um segundo ou dois o tempo no ar vazio e se vê aonde vai cair até tocar a água que se abre forçando a película extrema que é mais forte do que se imagina tento manter o corpo reto para tocar primeiro o calcanhar e abrir a água mesmo sendo tudo muito rápido me sinto entrando os pés pernas tronco e a pressão no pescoço para finalmente estar inteiro dentro da água afundando afundando afundando num contraste progressivo e lento de silêncio escuro, opaco e calmo pronto a água gelada junto com o susto a adrenalina tiram todo o semblante de querer ser adulto levando junto o barato da maconha e voltar à tona é como nascer de novo.

Todo mundo ali queria nascer de novo, ter outra vida, ser outro e mesmo dando mil saltos naquela cachoeira, ninguém conseguiu não voltar o mesmo, exausto, para aquela casa em que os pais nem sabiam por onde os filhos andavam. 

Na Usina.

Wagner Rengel

Wagner Rengel quis ser silêncio depois pássaro depois peixe depois vento depois grilo quis ser gente depois nada. Mora em Curitiba.

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